segunda-feira, 26 de março de 2012

Ah, os taxistas

Tem de tudo e eu já vivi bastante desse tudo.

Um que brigava com a ex-mulher pelo celular enquanto passava no farol vermelho e cortava os outros motoristas e que me colocou para fora do carro quando eu pedi para ele usar o telefone depois que me deixasse.

Outro que se achava o Anjo Gabriel e que jurou que dentro de um ano eu estaria grávida. (não, eu não engravidei)

Um senhor que me pegou às sete da noite debaixo de uma tempestade e recebeu uma ligação da filha pedindo ajuda para levar a netinha (dele) pro hospital. Saí correndo do táxi e paguei o suficiente para umas cinco corridas.

O ex-executivo de um banco que não conseguia arranjar emprego na área.

O mocinho atento à novela que passava no DVD e que paquerava todas as motoristas ao seu redor.

O jovem bonitão cheio de charme que, se quisesse, podia ser bem feliz no táxi.

O outro que conseguiu formar uma filha médica e outra química.

E hoje foi dia de conversar com o taxista sobre Eça de Queiroz, Dostoiévski, Machado de Assis e José de Alencar.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Eletroneuromiografia


O objetivo: averiguar a causa da dormência no meu braço esquerdo.

Deito na maca. A assistente pede para eu colocar as mãos sobre a barriga para aquecer os nervos dos membros superiores. O médico entra na sala quinze minutos depois:

- Ué, veio sozinha? Sem mamãe ou marido?

- Ué, era para vir acompanhada?

- Não, mas uma melhor amiga nessas horas ajuda a distrair. O exame não é muito agradável...

Peço para ele não me explicar o que vai acontecer. Sou a pessoa mais sugestionável que conheço. Nas aulas de Ciências sentia os sintomas da esquistossomose e os pés pesados da elefantíase.

O médico respeita o meu pedido enquanto me faz perguntas sobre a minha profissão, meu casamento, minha família, meus hábitos alimentares, minha cor preferida e conecta vários fios na minha mão e braço esquerdos. O mínimo ele precisava falar:

- Vou começar. Você vai sentir um choque. Se ficar muito ruim, me avisa. Pronto?

- Aaaaaaaaaaai...que é isso? O exame todo vai ser assim?

- Não. Você vai se acostumar.

- Aaaaaaaaaaai...que porra é essa?

- Então, tenta relaxar, manter o braço solto. Se você contrai a musculatura eu tenho que aumentar a intensidade do choque.

- Aaaaaaaaaaai...aaaaaaai. O senhor vai me indenizar no final, não vai?

- Quer desistir?

- Não. (além de querer descobrir a causa da dormência, já tenho que aproveitar as três horas que risquei da agenda para fazer o exame)

- Vocês mulheres são ótimas. Nenhum homem aguenta sofrimento e dor como vocês. Os barbudos que entram aqui desistem, falam que vão voltar e não voltam...

- Aaaaaaaaaaai...o senhor foi torturador na ditadura, não?

Não controlava mais a minha língua. Queria chorar, sair correndo, mas não precisava falar isso para o médico. Ele não pareceu se ofender, será que foi torturador mesmo? Eu precisava pensar em outra coisa, continuar, queria acabar logo com esse exame. Pensei mesmo nas pessoas torturadas enquanto ele continuava falando...

- E homem idoso então?

- O quê? O senhor também dá choque em velhinhos?

- Ué, aqui vai de zero a cem.

- ...

- Todo mundo pode ter uma doença nos nervos.

- ...

- Na verdade eu sou um eletricista, né?

- O senhor faz esse exame em bebês?

- Faço, claro. As doenças não escolhem faixa etária.

Mais choques. A pior sensação física que eu já tinha sentido até aquele momento. Comecei a chorar, quieta. Não tinha mais o direito de gritar e xingar o médico. Uma hora e meia de choques. Foi a segunda pior sensação física que já senti porque depois vieram as agulhadas. O médico disse que usou uma agulha bem fina e eu acreditei, mas cada vez que ele enfiava – com firmeza e precisão, aquela agulha nos meus braços, mãos, na pele entre os dedos, nos ombros e na nuca eu me sentia um alvo recebendo um dardo. Chorei mais. Num silêncio ainda maior. Aquele exame também era feito em bebês e crianças.

Depois de duas horas e meia naquela maca, o médico me parabenizou e compensou minha dor física com balinhas e chocolates. Eu comi, mas o gosto estava amargo.

terça-feira, 13 de março de 2012

Cores

Eu devia ter uns sete ou oito anos quando a professora explicou que os seres humanos eram divididos em quatro cores de pele: branca, negra, amarela e vermelha. Eu olhei para os meus braços e mãos e disse para a colega ao lado, "acho que sou amarela".

Hoje, por conta de uma dor no braço esquerdo que não me deixa, olhei de novo para ele. Continuo achando que sou amarela.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Foi num segundo

Um cisco no tempo em que nada poderia acontecer, mas que é justamente onde tudo acontece. Uma bomba explode no segundo. Um coração pára no segundo. Uma criança nasce no segundo. E foi num segundo que não deve ter me permitido nem piscar que eu senti que meu pé não tinha pisado no espaço vazio da calçada disputada por outros pés apressados e uma bengala. Meu pé direito podia ter tocado nos pés de moças com sandálias, pisado nos sapatos de imitação de couro dos rapazes, nos pés descalços e carcomidos dos mendigos, nos saltos das mulheres equilibristas; mas não. Quando desceu ao chão depois de uma subida só percebida em câmera lenta, foi nos olhos do cego que meu pé encostou. Num segundo eu percebi meus dedos envoltos no tecido fino do sapato tocarem uma esfera que eu diria ser o cabo de um guarda-sol se estivesse na praia. Num segundo pensei que nenhum maluco armaria um guarda-sol naquele concreto escarrado. Num segundo tentei imaginar o objeto no qual meu pé tinha tocado. E no segundo seguinte eu vi. Num segundo que não volta eu não tinha como tirar o pé do lugar em que ele não deveria estar porque ele já estava ali, disputando com a bengala os mesmos centímetros de calçada. O segundo não volta e não pára. Pé e bengala no mesmo espaço no mesmo segundo e um cego no chão com as mãos espalmadas à procura de uma ajuda que não vinha porque num segundo os outros pés se afastaram e as minhas mãos paralisaram. Por um segundo não teríamos nos encontrado. Onde ficou esse segundo em que meu pé não tocou a bengala? Esse segundo que não consigo rever porque não existiu? O grito do cego saiu num segundo. Não colérico. Lamentoso. No segundo seguinte meus ouvidos doeram. E mais um segundo paralisou as minhas mãos e os meus pés e os meus joelhos. Um outro segundo prendeu o desespero dentro da minha caixa torácica. Um segundo calou o grito do cego. Um segundo me fez ver as lágrimas naquele rosto na escuridão. Um segundo trouxe uma mão estendida que não a minha. O segundo que esticou a minha chegou depois. Muitos segundos depois. Por segundos, o cego não me viu.

sábado, 3 de março de 2012

Conto de Eduardo Muylaert no Tinta Fresca

Conto de Eduardo Muylaert no Tinta Fresca. Saído do forno agorinha. Para quem gosta de ler.
www.garapapaulista.com.br
Foi uma sorte não ter se casado com aquela mulher. Podia ter acontecido. Quando a conheceu, Armando ficou encantado, chegou a pensar em ter filhos. Não deu tempo, a paixão foi quente e volátil, conto mais do que romance.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Circo

E como ficará meu coração, meu filho, quando você sair com seu circo pelo mundo?
Você não verá, mas ele será a rede embaixo do trapézio
O público risonho com o seu nariz vermelho
A pessoa sentada na primeira fila com os olhos grudados no picadeiro

Ele não terá mais casa
Não conhecerá fronteiras
Estará no topo da lona
Onde quer que seu circo seja montado

Para Francisco,
Da mamãe