terça-feira, 26 de junho de 2012

Mudei

Gosto muito do Avencalouca e de todas as avencas, mas vou para um cantinho só meu, com textos diferentes dos que posto aqui. Para quem se interessar: www.lucianagerbovic.blogspot.com

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O que eu posso fazer se os estereótipos existem?

Local: salão "de beleza".

Ela: alta, magra, fios de cabelo impecavelmente retos e lisos, maquiada, calça e bota de couro, casaco felpudo, jóias nas orelhas e nos dedos das mãos, bolsa Channel, IPad envolto numa capa de couro Louis Vuitton, IPhone no colo.

Ela recebe a notícia de que a manicure ligou dizendo que está atrasada por causa do ônibus que não passou no horário.

Ela: ah, isso é muuuiiinnnta sacanagem!

A gerente do salão explica que colocará outra no lugar, ela abre a boca, mas o Iphone toca.

Ela: Alô!

...

Ela: Maria, eu já disse que preciso de você no domingo, não disse? No sábado até te libero, mas no domingo as meninas têm apresentação no clube e depois uma festinha, lembra?

...

Ela: Então, no domingo não dá.

...

Ela: Mas ele vai ter prova a semana que vem toda? Então não adianta estudar só sábado e domingo. Não vai adiantar você ficar estudando com ele no final de semana, ele tem que começar a estudar hoje.

...

Ela: Começa a estudar hoje à noite e estuda até sexta à noite.

....

Ela: Ah, espera aí! Ele vai ser coroinha na missa de domingo? Mas não tem semana de provas? Então não pode ser coroinha. Se tem prova, essa é a prioridade, não vai ser coroinha.

...

Ela: Bom, Maria, se vira, no domingo eu preciso de você, já tinha falado da apresentação das meninas e da festinha. Eu te ligo na quinta à noite de novo, até lá você pensa como vai fazer.

...

Ela: Tchau. Um beijo.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A lua, as estrelas e uma base

Eu conheço um menino que fez uma lista de compras: ovos, cenoura, bolo e uma lua. A mãe perguntou se ela alcançaria a lua, ao que ele montou em suas costas e ofereceu ajuda. Você consegue, ele dizia, você consegue. E esticou os braços.

Esse menino que viu a mãe preparando uma mala para viagem e antes que ela fosse fechada colocou ali dentro, pela última fresta do zíper, uma maquiagem. Era da mãe, mesmo que ela não a usasse mais. Nessa noite a mãe sentiu medo de dormir sozinha. Só conseguiu quando abraçou o potinho branco da base vencida pelo tempo.

Hoje pela manhã esse menino me convidou para procurarmos estrelas e eu aceitei o convite.

domingo, 6 de maio de 2012

Uma flor, uma lágrima e uma saudade

Um dia ele me disse que conheceríamos a América por terra e água e nos casaríamos na Costa Rica porque eu era a mulher da vida dele e ele não passaria nem mais um dia sem me dizer "eu te amo eu te amo eu te amo". E na volta teríamos quatro filhos, dois homens e duas mulheres, e o primeiro dos meninos se chamaria José. Os outros eu poderia escolher. E moraríamos numa casa com quintal para brincarmos com as crianças e os dois cachorros nos finais de semana. E na hora de dormir ele leria Vinícius para mim porque eu era a menina com uma uma flor dele. E eu ficaria chorosa e adormeceria deitada numa rosa. E morreríamos de mãos dadas e cabelos brancos e antes de fechar os olhos pela última vez, ele me diria "obrigado por tudo, minha menina". E teríamos sido felizes para sempre. Um dia ele me disse tudo isso, mas não me lembro quem ele é.

domingo, 29 de abril de 2012

De um passado recente...será que já postei?

O CONSERTADOR DE ALMAS

O senhor quer saber por que estou aqui?

...

Eu estou aqui não porque meu casamento rachou com a batida da porta, nem porque tenho medo – não, medo eu tenho de perder o emprego e de encontrar patinhas de barata na comida do restaurante; o que eu sinto é pavor, uma indizível estremeção de ter que enterrar um filho, e nem estou aqui porque me pergunto todos os dias, e se chover?

Eu estou aqui por causa da bolha que habita o meu estômago e de quando em quando se expande até a garganta e os dedos dos pés e das mãos, me amaldiçoando por eu ter apenas esse espaço para oferecer. Mas existem pernas e braços infinitos?

E quando sua inconformidade atinge a loucura, ela sobe para a minha cabeça e se autoinflama, como uma criança que desejasse ganhar o prêmio pela maior bolha de sabão já feita, soprando até o limite para não estourar, o espaço exato onde nenhuma gota de ar a mais caberia.

Eu fico como um balão perdido sobre os homens, aterrorizado com o azul que não está acima de nós, jogado pela ilusão a todos os cantos de uma cidade que não reconheço, gritando numa língua que ninguém entende, até a bolha se autoesvaziar e me dar um pouco de tempo na concretude em que também não me encaixo.

Comecei com chá de hortelã e de folha de maracujá, passei para Maracugina e passiflora. Divã, quatro paredes e nenhuma palavra solta. Lexapro e Rivotril. Uma poltrona, dois olhos em mim e os meus na janela. Estou cansada estou cansada estou cansada – só tenho essas palavras que ninguém entende para dizer. Ansiolíticos debaixo da língua e dentro da veia. Alimentei a bolha com ar e cinzas.

Em nenhuma dessas caixas e cômodos encontrei o homem do conserto.

E hoje, ele veio?

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O grama da grama ou a gota d'água

E eles se separaram por causa da grama que não cobriu toda a terra e transformou os dias de chuva em dias de lama.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A faixa

Se ela acelerasse, corria o risco de parar em cima da faixa de pedestres. Não foi. O taxista, logo atrás, meteu a mão na buzina como se o dia estivesse terminando e não começando, gesticulou e gritou: vai porra, vai. Ela não foi: a faixa! O jovem mendigo, olhos azuis escondidos sob a pele encardida, levantou com o saco de pertences nas costas e também gritou: se mexer com a mina eu te meto a mão, filho de uma égua!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Inteligência

Dia 02 de abril de 2012, numa barraca de frutas numa esquina das Perdizes, São Paulo capital:

- Por favor, senhor, quanto é a fatia da melancia?
- R$ 1,50.
- Quero duas.

Chego em casa e ao guardá-las na geladeira vejo que o senhor desdentado me entregou três.

Dia 09 de abril de 2012, no mesmo local:

- Quero duas fatias de melancia, por favor.
- R$ 3,00.
- Mas eu vou pagar R$ 4,50 porque na semana passada eu pedi duas fatias e quando cheguei em casa vi que o senhor me entregou três.
- Ãh?
- Semana passada eu pedi duas fatias. Paguei pelas duas. Mas quando cheguei em casa vi que o senhor me deu três. E eu comi. Então hoje vou pagar por essa fatia a mais, entendeu?
- Ah, você é muito inteligente.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ah, os taxistas

Tem de tudo e eu já vivi bastante desse tudo.

Um que brigava com a ex-mulher pelo celular enquanto passava no farol vermelho e cortava os outros motoristas e que me colocou para fora do carro quando eu pedi para ele usar o telefone depois que me deixasse.

Outro que se achava o Anjo Gabriel e que jurou que dentro de um ano eu estaria grávida. (não, eu não engravidei)

Um senhor que me pegou às sete da noite debaixo de uma tempestade e recebeu uma ligação da filha pedindo ajuda para levar a netinha (dele) pro hospital. Saí correndo do táxi e paguei o suficiente para umas cinco corridas.

O ex-executivo de um banco que não conseguia arranjar emprego na área.

O mocinho atento à novela que passava no DVD e que paquerava todas as motoristas ao seu redor.

O jovem bonitão cheio de charme que, se quisesse, podia ser bem feliz no táxi.

O outro que conseguiu formar uma filha médica e outra química.

E hoje foi dia de conversar com o taxista sobre Eça de Queiroz, Dostoiévski, Machado de Assis e José de Alencar.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Eletroneuromiografia


O objetivo: averiguar a causa da dormência no meu braço esquerdo.

Deito na maca. A assistente pede para eu colocar as mãos sobre a barriga para aquecer os nervos dos membros superiores. O médico entra na sala quinze minutos depois:

- Ué, veio sozinha? Sem mamãe ou marido?

- Ué, era para vir acompanhada?

- Não, mas uma melhor amiga nessas horas ajuda a distrair. O exame não é muito agradável...

Peço para ele não me explicar o que vai acontecer. Sou a pessoa mais sugestionável que conheço. Nas aulas de Ciências sentia os sintomas da esquistossomose e os pés pesados da elefantíase.

O médico respeita o meu pedido enquanto me faz perguntas sobre a minha profissão, meu casamento, minha família, meus hábitos alimentares, minha cor preferida e conecta vários fios na minha mão e braço esquerdos. O mínimo ele precisava falar:

- Vou começar. Você vai sentir um choque. Se ficar muito ruim, me avisa. Pronto?

- Aaaaaaaaaaai...que é isso? O exame todo vai ser assim?

- Não. Você vai se acostumar.

- Aaaaaaaaaaai...que porra é essa?

- Então, tenta relaxar, manter o braço solto. Se você contrai a musculatura eu tenho que aumentar a intensidade do choque.

- Aaaaaaaaaaai...aaaaaaai. O senhor vai me indenizar no final, não vai?

- Quer desistir?

- Não. (além de querer descobrir a causa da dormência, já tenho que aproveitar as três horas que risquei da agenda para fazer o exame)

- Vocês mulheres são ótimas. Nenhum homem aguenta sofrimento e dor como vocês. Os barbudos que entram aqui desistem, falam que vão voltar e não voltam...

- Aaaaaaaaaaai...o senhor foi torturador na ditadura, não?

Não controlava mais a minha língua. Queria chorar, sair correndo, mas não precisava falar isso para o médico. Ele não pareceu se ofender, será que foi torturador mesmo? Eu precisava pensar em outra coisa, continuar, queria acabar logo com esse exame. Pensei mesmo nas pessoas torturadas enquanto ele continuava falando...

- E homem idoso então?

- O quê? O senhor também dá choque em velhinhos?

- Ué, aqui vai de zero a cem.

- ...

- Todo mundo pode ter uma doença nos nervos.

- ...

- Na verdade eu sou um eletricista, né?

- O senhor faz esse exame em bebês?

- Faço, claro. As doenças não escolhem faixa etária.

Mais choques. A pior sensação física que eu já tinha sentido até aquele momento. Comecei a chorar, quieta. Não tinha mais o direito de gritar e xingar o médico. Uma hora e meia de choques. Foi a segunda pior sensação física que já senti porque depois vieram as agulhadas. O médico disse que usou uma agulha bem fina e eu acreditei, mas cada vez que ele enfiava – com firmeza e precisão, aquela agulha nos meus braços, mãos, na pele entre os dedos, nos ombros e na nuca eu me sentia um alvo recebendo um dardo. Chorei mais. Num silêncio ainda maior. Aquele exame também era feito em bebês e crianças.

Depois de duas horas e meia naquela maca, o médico me parabenizou e compensou minha dor física com balinhas e chocolates. Eu comi, mas o gosto estava amargo.

terça-feira, 13 de março de 2012

Cores

Eu devia ter uns sete ou oito anos quando a professora explicou que os seres humanos eram divididos em quatro cores de pele: branca, negra, amarela e vermelha. Eu olhei para os meus braços e mãos e disse para a colega ao lado, "acho que sou amarela".

Hoje, por conta de uma dor no braço esquerdo que não me deixa, olhei de novo para ele. Continuo achando que sou amarela.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Foi num segundo

Um cisco no tempo em que nada poderia acontecer, mas que é justamente onde tudo acontece. Uma bomba explode no segundo. Um coração pára no segundo. Uma criança nasce no segundo. E foi num segundo que não deve ter me permitido nem piscar que eu senti que meu pé não tinha pisado no espaço vazio da calçada disputada por outros pés apressados e uma bengala. Meu pé direito podia ter tocado nos pés de moças com sandálias, pisado nos sapatos de imitação de couro dos rapazes, nos pés descalços e carcomidos dos mendigos, nos saltos das mulheres equilibristas; mas não. Quando desceu ao chão depois de uma subida só percebida em câmera lenta, foi nos olhos do cego que meu pé encostou. Num segundo eu percebi meus dedos envoltos no tecido fino do sapato tocarem uma esfera que eu diria ser o cabo de um guarda-sol se estivesse na praia. Num segundo pensei que nenhum maluco armaria um guarda-sol naquele concreto escarrado. Num segundo tentei imaginar o objeto no qual meu pé tinha tocado. E no segundo seguinte eu vi. Num segundo que não volta eu não tinha como tirar o pé do lugar em que ele não deveria estar porque ele já estava ali, disputando com a bengala os mesmos centímetros de calçada. O segundo não volta e não pára. Pé e bengala no mesmo espaço no mesmo segundo e um cego no chão com as mãos espalmadas à procura de uma ajuda que não vinha porque num segundo os outros pés se afastaram e as minhas mãos paralisaram. Por um segundo não teríamos nos encontrado. Onde ficou esse segundo em que meu pé não tocou a bengala? Esse segundo que não consigo rever porque não existiu? O grito do cego saiu num segundo. Não colérico. Lamentoso. No segundo seguinte meus ouvidos doeram. E mais um segundo paralisou as minhas mãos e os meus pés e os meus joelhos. Um outro segundo prendeu o desespero dentro da minha caixa torácica. Um segundo calou o grito do cego. Um segundo me fez ver as lágrimas naquele rosto na escuridão. Um segundo trouxe uma mão estendida que não a minha. O segundo que esticou a minha chegou depois. Muitos segundos depois. Por segundos, o cego não me viu.

sábado, 3 de março de 2012

Conto de Eduardo Muylaert no Tinta Fresca

Conto de Eduardo Muylaert no Tinta Fresca. Saído do forno agorinha. Para quem gosta de ler.
www.garapapaulista.com.br
Foi uma sorte não ter se casado com aquela mulher. Podia ter acontecido. Quando a conheceu, Armando ficou encantado, chegou a pensar em ter filhos. Não deu tempo, a paixão foi quente e volátil, conto mais do que romance.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Circo

E como ficará meu coração, meu filho, quando você sair com seu circo pelo mundo?
Você não verá, mas ele será a rede embaixo do trapézio
O público risonho com o seu nariz vermelho
A pessoa sentada na primeira fila com os olhos grudados no picadeiro

Ele não terá mais casa
Não conhecerá fronteiras
Estará no topo da lona
Onde quer que seu circo seja montado

Para Francisco,
Da mamãe

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Rudolph Giuliani, cadê você?

É, tem estabelecimento que pede pra perder o cliente.

Vejo um cartaz numa lanchonete árabe com dois pratos para o almoço e peço o número 1.

- O número 1 não tem.
- Bom, então quero o 2.
- O 2 vai demorar muito pra ficar pronto.
- Então não é melhor tirar esse cartaz daí?
- Não posso.
- Entendi. Mas você pode falar pro seu patrão que uma cliente sugeriu que o cartaz não exponha pratos que vocês não vendem?

Ela me olha como se eu estivesse usando um gorro de lã em pleno verão. Eu não desisto (estava com muita fome).

- Então me dá duas esfihas de carne e um suco de uva.
- R$ 9,90.

Dou uma nota de R$ 10,00, ela registra a venda e me diz:

- Vou te dever R$ 0,10, pode ser?
- Se eu tivesse só R$ 9,80 eu poderia comprar o que pedi?
- Não.
- Então não.

Ela joga a nota de R$ 10,00 no balcão, me olhando como se eu fosse o Bin Laden.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A casa dos orixás

Era uma casa de fazenda branca com portas e janelas azuis-claras, esquecida por um empreendedor quase na divisa entre dois residenciais de Alphaville. Eu passava por mansões modernas e pós-modernas e depois de uma curva me deparei com essa casa. Tanta gente passava por aquelas portas cor de azulejo antigo que resolvi entrar também. Peças de antiquários espalhadas pelas salas e em uma delas um fogão com a lenha queimando. Diante dele, uma negra vestindo um vestido e um turbante brancos mexia um vatapá com seus braços tão grossos quanto as paredes daquela casa. Será que alguém lá saberia me dizer qual o meu orixá? Um velho também negro leu meu pensamento e sorriu desdentado. Eu acenei de volta, faminta. Uma mulata grisalha saiu de um dos quartos dizendo "eu sabia que devia ter vindo". Eu também sabia.

Se eu descobrisse que essa casa existe fora dos meus sonhos, passaria um tempo nela.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

And the Oscar goes to...people who care

Há muitos anos eu não assistia ao Oscar. Confesso que engoli as lágrimas que queriam sair ao ver a emoção da Octavia Spencer. E só de olhar para a Meryl Streep eu sinto vontade de chorar. Dentre tantos trabalhos que dignificam e justificam a arte, se é que a arte precisa de justificativa, eu sempre me lembro de um close seu em "A escolha de Sophia" que me deixou alguns dias com dificuldade para respirar.

E não vou negar o meu encanto ao ver todos aqueles vestidos (o da Jennifer Lopez não entra nessa categoria) e joias, o que me faz pensar que deve ser muito bom ser bonita, rica e aplaudida. Mas se Deus ou qualquer entidade do gênero existe, sabe o que faz ao não me dar tamanha beleza, fama e dinheiro, pois eu seria uma pessoa insuportável.

E no dia seguinte eu acordo e ajudo meu marido a colocar as crianças no carro para irem à escola e quando dou um beijo em cada um e digo "boa aula" sinto a mesma quentura que me invade ao entrar numa padaria num fim de tarde e caminho em jejum em direção a um laboratório carregando uma estatueta de ouro no coração. E no laboratório um homem se despede da esposa que toma um lanche com um afago nos seus cabelos e outro na barriga cheia de vida. Eu desejo que aquele bebê venha com saúde e una ainda mais aquele casal que eu nunca havia visto e provavelmente nunca mais verei, mas não importa. E na televisão mais uma criança morta por um jet ski mal dirigido por alguém que provavelmente pensa que uma represa existe apenas para satisfazer o seu direito ao lazer. E eu penso nos carros estacionados em duas vagas porque seus donos - bem, seus donos são donos e acham que quem é dono, seja lá do que for, pode fazer o que quiser. E nos vizinhos que ligam seus aparelhos de som em alto volume em plena madrugada porque estão dentro de casa e têm o direito de ouvir a música que gostam, ainda que num volume que faz quem não goste da música também escutá-la (ou até goste da mesma música, mas precisa dormir de madrugada). E nos proprietários que abandonam suas casas como se o abandono não afetasse seus vizinhos, afinal, eles são donos. Ser dono tornou-se um grande mal. Todos donos de direitos, cujos deveres - o outro lado da moeda, não pertencem a ninguém. A construtora que só pode fazer carregamentos depois das 22h00 em São Paulo, mas que o faz entre 01h00 e 02h00 ao invés de fazê-lo entre as 22h00 e 23h00, por exemplo, o que, sim, faz muita diferença para os moradores em volta da obra. E no caminho de volta me pergunto a que horas acordou a vendedora de bolos que monta uma barraca numa avenida poluída e vende um pedaço para um senhor que deveria estar aproveitando a aposentadoria ao invés de ir para o trabalho. A avó que briga para a neta tirar a ramela dos olhos. A mãe que segura firme na mão da filha para atravessar a avenida. E eu volto, prestando atenção para atravessar sempre na faixa de pedestres.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Cartilha

Hoje eu vi um homem negro com alguns fios de cabelo brancos e muitas rugas no rosto, usando um boné, uma camisa e uma calça sujos de tinta e um par de botas surradas, sentado num dos bancos externos da Biblioteca Mário de Andrade, fazendo exercícios de matemática numa cartilha com um lápis e uma borracha nas mãos e engoli seco para não derramar lágrimas logo pela manhã.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Das coisas que não entendo

Cena 1:

Uma garota entra no campus de uma universidade e um colega pergunta a ela:

Onde você vai?

Ela:

Onde eu vou? Pegar o xerox. Pegar o xerox, pegar o xerox, pegar o xerox. Minha vida se resume a isso: pegar o xerox, ler o texto, pegar o xerox, ler o texto. Não aguento mais pegar o xerox, ler o texto, pegar o xerox, ler o ...

Enquanto esbraveja, ela entra para pegar o xerox no Centro Acadêmico da Faculdade de Letras.

Cena 2:

Eu numa livraria, com uma lista de livros na mão. Um vendedor me pergunta:

Quer ajuda?

Eu:

Ah, quero sim. Já tem um vendedor procurando um livro pra mim no estoque, mas se você puder ver se tem outros da minha lista, agradeço.

Ele:

Mas quem está te atendendo já?


Eu:

Não sei o nome dele.

Ele:

É o Júlio?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A avenca está louca de internar

Então eu entro num banho devido a mim mesma há horas. Só o barulho da água escorrendo e batendo no chão. Água morna. É quase um presente dos deuses para essa mortal tão cansada. E é quando meu cerébro desliga dessa vida terrena que alguém bate na porta. Uma. Duas. Três vezes. Resolvo ignorar. Eu mereço esse banho. Eu mereço esses minutos. Mas a pessoa insiste. Uma. Duas. Três vezes. Visita a essa hora? Mas visita para bater na porta do banheiro só se for minha mãe ou minha irmã. Será que elas apareceriam sem avisar? Uma. Duas. Três vezes. Ninguém responde quando eu pergunto quem é. Talvez não me escutem. Termino o banho rapidamente. A cabeça vazia já está cheia de impropérios. Saio da banheiro e só vejo a babá dos meus filhos no quarto ao lado. Não, ninguém bateu na porta.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quem tem medo do Lobo Mau?



E eu que achava que sabia o que era sentir medo quando via um sapo. Até ver o rosto do meu primeiro filho na maternidade. Não, ele era lindo. Tudo bem, um pouco amassado, o nariz tortinho, um olho mais aberto que o outro, mas nada comparado a um sapo. Olhei para aquele rostinho e pensei em escondê-lo de volta no útero. Volta, menino, volta, aqui você estará mais protegido. Doenças, violência, desilusões, traições. Como protegê-lo? Caí dentro da minha impotência e do meu amor. São enormes. E acho que passarei o resto dos meus dias escalando o caminho de volta, sem retorno. E no segundo dia de vida do meu filho eu tive que assinar uma autorização para que ele passasse por uma cirurgia. Um grito silencioso e avassalador no meu peito. Deu tudo certo, mas ainda escuto o eco. E hoje, quando ele fala que está com medo porque o Lobo Mau está na porta, eu vou lá, abro a porta, e digo: vai embora, seu Lobo, que aqui você não entra, ele vai todo saltitante para o quarto dele e eu vou para o meu, chorar de medo do Lobo Mau.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Novaiorqui

Os galhos secos das árvores reforçam a mensagem: estou fora de casa.
Final de tarde de inverno, o céu azul e laranja faz do espetáculo do por do sol quase um arco íris.
Estou fora de casa.
O trajeto do aeroporto até o hotel é percorrido ao som de um idioma que me causa estranheza.
Estou fora de casa.
Muita gente, de todos os tamanhos, tipos e cores, falando no celular, saindo do trabalho, indo ao encontro de alguém. Parecido com o que conheço, mas bem diferente.
Estou fora de casa.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O crack e a reza

Eu vi um bebê se formando no ventre de uma moça corroída pelo crack. Eu vi essa mãe sem idade aparente rodando em frente à Catedral da Sé com um filho se formando no ventre. Em frente a uma igreja. O sinal da cruz da moça que passa. Uma pessoa no ventre de uma mãe viciada em crack. Uma pessoa pequenininha que insiste em crescer num ambiente inóspito. Saia daí, seu teimoso! Duas vidas jogadas contra as pedras. As pedras são mais duras que os ossos humanos. Um crack bem alto foi ouvido no meu coração. Eu ouvi. A moça não. Eu não consigo fazer o sinal da cruz em frente a uma igreja. Eu não gosto de igrejas. E não sei fazer o sinal da cruz. O filho está na esquerda ou na direita? Ou tanto faz? Eu duvido da existência de Deus. Eu penso em recolher aquela mulher até seu bebê nascer e tomá-lo para mim. Penso em colocá-lo no meu coração rachado pelo crack que eu ouvi. Eu não penso nada. Mas sinto tudo. Eu só penso nela. Eu não sei rezar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A avenca está muito louca

Saio de casa para uma reunião. De carro. Meu marido sai para trabalhar. Também de carro e para o outro lado da cidade. Vou para a reunião e deixo o carro num estacionamento. Na hora de buscá-lo, duas horas depois, o que eu vejo no estacionamento? O carro do meu marido. Penso em ligar para o celular dele para dizer que eu também estava ali, mas opto pelo não. O que ele estaria fazendo lá? Resolvo ficar de butuca, pegá-lo no pulo. Mas que pulo? Que bobagem. Não sou ciumenta neurótica por natureza e também porque meu marido não me dá motivos para isso. Resolvo ir embora, tenho muita coisa para fazer. Peço o carro e o manobrista me entrega o carro do meu marido.

Casa de mulheres e meninos

Às vezes a tarde encontra a casa cheia de meninos e mulheres. Quando isso acontece, as paredes engrossam, o vento pede licença para entrar, as nuvens dão lugar ao sol, o ar ganha aromas e delicadeza e a natureza observa. As mulheres limpam, arrumam, cozinham, lavam, passam, trocam confidências, soltam muitas risadas e cuidam. Nenhuma ordem é dada nessas tardes porque nessas tardes tudo já está em ordem.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sêneca no bumba


Aposto que isso já aconteceu com você.
É um pensamento, uma intuição, um sentir que passa pelo seu corpo, você presta uma ligeira atenção e... deixa ir. Vou dar um exemplo.
Hoje cedo antes de sair de casa, ao pegar a chave da porta me veio esse não-sei-que, dizendo "pegue a capa de chuva". Peguei a chave e saí.
Como uma das minhas metas de ano novo, que está em pleno andamento, é usar mais o transporte público deixando o carro em casa, segui alegre e contente em direção ao ponto de ônibus.
Tudo que é novidade tem um gosto diferente. Nossa energia está à disposição. Novo é novo, oras! Estar dentro do bumba, lendo um livro tem sido animador! A sensação de estar aproveitando direitinho o tempo, me alimenta. Sêneca no bumba. Parece título de poema...
Chegando ao Largo da Batata, resolvi caminhar pela Faria Lima em pleno horário do rush. As pessoas correndo para chegar na hora ao seu compromisso e a vida acontecendo no bairro de Pinheiros. Muitos falando ao celular, um dia lindo para caminhar, comércio sendo aberto, cheiro de pão de queijo em muitos pontos da calçada e outros cheiros que tiram o apetite.
Durante o percurso, pararam o trânsito para me dar passagem! Impossível deixar de sorrir diante de um gesto delicado destes, mesmo tendo sido feito pelo marronzinho que trabalhava. O trabalho dele fez com que eu me sentisse especial. Gentileza na cidade de pedra.
A primeira reunião aconteceu no horário, depois a segunda reunião também, bolachinhas para o almoço e na sequencia o treinamento. Tudo certo, dia produtivo. Aproximadamente 16,30h na cidade de São Paulo. Verão. 35 graus.
Pergunto a voce, leitor: o que acontece em São Paulo, nas condições mencionadas num final da tarde?
Respondo: seu sapato encharca, o ônibus não chega, seu vestido cola em seu derriere e você promete a si mesma que da próxima vez dará ouvidos à sua intuição. Ou bom senso, tanto faz.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

O quebra-cabeça do respeito

Então a madrugada foi assim: pela terceira na vez na semana, na obra ao lado do prédio, uns dez homens começaram a descarregar um caminhão com centenas de placas de ferro. Era um esforço conjunto para levantá-las e jogá-las na calçada, enquanto outros homens as levavam para dentro da obra. Gritavam ordens. Eram duas da manhã. Até que uns vizinhos se encheram, tiraram os carros da garagem e fecharam o caminhão. Ninguém sairia de lá até que o responsável pela obra fosse encontrado. Caminhão parado, placas de ferro jogadas no chão, vários celulares ligados. E um vizinho que não desceu resolveu colocar um rock pesado no mais alto volume que ele conseguiu. Protestava em favor dos trabalhadores da obra que não podiam trabalhar de madrugada porque caminhões não podem mais entrar em São Paulo durante o dia, o que de fato ajudou a melhorar um pouco o trânsito. Gritando mais alto que a caixa de som, dizia que só abaixaria o volume quando os moradores liberassem o caminhão. Ouvi-a uma voz feminina idosa também gritando, mas defendendo os moradores, pois essa não era a primeira vez que as pessoas eram privadas do sono por causa do barulho da obra. Uns precisam trabalhar ruidosamente. Outros merecem descansar. Tudo no mesmo momento.

Eu fiquei olhando pela janela tentando montar esse quebra-cabeça. Não consegui. São Paulo é uma cidade que não fecha.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Se ventar...

Mais um dia...
Ouvir o despertador, pernas e olhos pesados, levantar.
Preparar o café, tomar banho, desjejum.
Caminhar até o ponto, sacudir em pé no ônibus, trajeto.
Bater o cartão, ligar o computador, bom dia, posso ajudar?
Marmita fria, arroz sem mistura, refeição.
Outro telefonema, café sem gosto, boa tarde, posso ajudar?
Sair as cinco, chegar às oito, trânsito.
Abrir a porta, cômodo para arrumar, solidão.
Deitar tarde, sem janta nem tevê, que vida.
Melhor dormir, sem suspirar.
Está que é só o pó...


Te Pe Eme - uma historinha

Há muitos e muitos anos, num mundo em que ainda havia reinos, nasceu uma linda e saudável princesa. Seus olhos eram tão redondos e brilhantes que seus pais batizaram-na de Lua Cheia.

Desde pequena a princesinha brincava com suas bonecas sonhando com o dia em que cuidaria dos seus próprios filhos. Ela queria muitas crianças no seu castelo.

Lua Cheia cresceu e ficou com os olhos ainda mais belos. Na época em que as princesas são apresentadas para seus príncipes encantados, ela conheceu o mais bonito de todos eles. Poucos meses depois se casaram e viveram felizes até o dia em que Lua Cheia desconfiou de que não poderia ter filhos. Já estava casada há dois anos e o número de tentativas era digno de um casal apaixonado. Seus pais e seus súditos a cobravam.

Naqueles tempos os reis e rainhas tinham seus deuses particulares e foi para eles que Lua Cheia pediu ajuda. Todas as noites, antes de se deitar, ela oferecia flores e fazia uma prece para os deuses.

Mais um ano se passou e seu útero continuava vazio. Lua Cheia ficou descrente dos poderes desses deuses e até mesmo de suas existências. Talvez fossem apenas uma invenção de nobres assustados com a vida mundana. A princesa então, mesmo insegura, resolveu procurar por outro tipo de ajuda. Mais terrena.

A primeira que encontrou foi a de uma conselheira, famosa numa aldeia não muito distante. Lua Cheia passava horas conversando com a sábia mulher, mas a tão desejava gravidez não chegava. Desistiu de tanta conversa e bateu na porta de uma feiticeira que lhe preparou uma poção de cheiro e gosto duvidosos, que nada resolveu. Foi ao encontro de um velho enrugado que dizia palavras indecifráveis enquanto batia na sua barriga e costas com galhos de uma árvore que ela nunca havia visto. Ela só apanhou e não engravidou.

Quando o desespero tomou conta de sua alma, Lua Cheia passou a beber sangue de porcos recém-nascidos e a comer placenta de cabras. Quando bebeu sêmen de coelho a conselho de uma conhecida, os deuses – aqueles nos quais ela não acreditava mais, se ofenderam. Todos têm um limite, até os deuses. Vale lembrar que naquela época os deuses não eram entidades dotadas só de bondade e magnanimidade. Muito pelo contrário. Eram vaidosos e irascíveis, capazes das maiores crueldades quando ofendidos. E foi o que aconteceu.

Numa tarde em que Lua Cheia passeava pela floresta à procura de um coelho, um raio desacompanhado de qualquer tempestade atingiu a pobre princesa, que morreu na hora.

Foi assim que Lua Cheia se transformou num espírito carregado de frustração, mágoa, raiva e desejo de vingança. Como ela nada podia contra aqueles deuses e seus raios, o espírito da Lua Cheia passou a apossar-se de mulheres férteis. Nada era mais odioso para o espírito da Lua Cheia do que a fertilidade. O espírito da Lua Cheia, se tivesse o poder dos deuses, roubaria a capacidade de procriar de todas as mulheres. Nenhum ser mais nasceria na Terra. Mas como não era assim tão poderosa, decidiu castigá-las de outra forma.

Uma vez no mês, quase sempre durante o sono de suas vítimas, o espírito da Lua Cheia se apodera do corpo das mulheres, que vão dormir repletas de ternura e acordam com uma vontade inexplicável de destruir tudo o que encontram, vivo ou não. Enquanto possuídas, as mulheres tornam-se incapazes de ver qualquer beleza no mundo e passam dias com as mãos invisíveis da Lua Cheia a torcer-lhes as vísceras e a traqueia. Quando estão a ponto de sair gritando pelas ruas por socorro, o espírito maligno sai do mesmo modo que entrou, sem pedir licença. As mulheres acordam somente com a certeza de que estavam loucas.

Nossos médicos, como nada sabem sobre as coisas do outro mundo, chamam isso de TPM. O espírito da Lua Cheia ri.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SAUDADE

sau.da.de
sf (lat solitate) 1 Recordação nostálgica e suave de pessoas ou coisas distantes, ou de coisas passadas. 2 Nostalgia. 3Ornit Pássaro muito atraente da família dos Cotingídeos (Tijuca atra); assobiador. 4 Bot Nome com que se designam várias plantas dipsacáceas e suas flores; escabiosa. 5 Bot Planta asclepiadácea (Asclepias umbellata). sf pl Lembranças, recomendações, cumprimentos. S.-da-campina: o mesmo quecega-olho, acepção 1. Saudades-de-pernambuco: o mesmo que jitirana-de-leite. Saudades-perpétuas, Bot: planta da família das Compostas (Xeranthemum annuum).
É uma palavra única. Só existe em galego e em português. É também minha palavra favorita. Talvez porque eu seja tão apaixonada por essa língua que eu fico pimpona de saber que nós podemos expressar esse sentimento de uma maneira que ninguém mais no mundo consegue. E me dá um orgulho danado falar, escrever, me comunicar em uma língua que sabe como dizer saudade. Hoje é o Dia da Saudade, não sei porque. Talvez alguém precisasse institucionalizar o sentimento, ou talvez porque havia algum deputado entediado. Eu gosto de pensar que alguém amava tanto a dor daquele vazio que se instalava, sentia-se tão impotente diante da lembrança do que seus braços já não mais alcançavam; que resolveu criar um dia para sentir saudades, adicionando como regra que não se houvesse mais saudades em dia nenhum após aquele. Acontece que saudade é como fumaça de incêndio ou poluição. Inevitável, indomável, impalpável. Ela passa pelas frestas, enche nossos pulmões. Não existe como dissociar saudades do ar que respiramos. E quando faz muito tempo, já não sabemos dissociar as saudades de nós mesmos. O que mais gosto de saudade, é que ela não pode ser planejada. Ela chega, e só existe quando já é. Não se escolhe quando sentir saudades, assim como não escolhemos quando amamos o que se foi. Às vezes sinto saudades do que está bem na minha frente. É quando realizo que já não sou mais meu objeto de saudades. Então encaro a estranha no espelho e aceito que um dia também posso sentir saudades dela.

20 anos

Há vinte anos, mais ou menos nessa hora, eu recebia a notícia da morte de uma pessoa querida. Mais do que querida, amada. Uma pessoa que oito dias antes havia completado vinte anos de vida. Uma pessoa com quem brinquei, uns vinte dias antes do seu aniversário de vinte anos: vai ficar velho. Uma pessoa que me respondeu com seriedade nos olhos e na voz (tão contrária à costumeira alegria): não brinque com isso, não fale mais disso, eu não deveria fazer vinte anos. Quanta bobagem, pensei. Só pensei. No dia 30 de janeiro de 1992, enquanto esperava por ele sentada numa cadeira em frente ao mar e recebi a notícia de que ele não viria, não viria nunca mais, eu entendi. Ele não devia ter feito vinte anos.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Joelhos

Olhos baixos. Preto não, que ela não vestia preto. Nenhum pensamento em especial, mas evitava palavras. Olhava para os joelhos. O movimento em torno do caixão no meio da sala lhe era incompreensível. Odiava seus joelhos agora grudados e jurava que, de hoje em diante, eles lhe seriam escravos. Sentiu uma estranha cãibra no abdômen, sua coluna se curvou um pouco mais e algum desatento podia supor que ela soluçava. A respiração acelerou, a boca entreaberta e muda, os olhos fechados com força. Não tornaria a olhar para ele. A mão espremia um lenço que alguém lhe dera e ela percebeu seus mamilos rijos. As mãos agarraram a borda da cadeira estofada. O assento estava quente e os joelhos tentavam se separar contra vontade. Inútil.  Crispou o lenço e pequenas ondas vararam seu corpo. A cabeça se jogou para cima com mais energia do que seria de se esperar e os olhos continuavam cerrados. Pouco importava. Soltou a respiração forçada e lentamente enquanto os ombros cederam, a boca abriu sonora e o corpo abandonou a tensão que sustentara por um tempo. Ofegava. O caixão estava a caminho da sepultura, levando este último orgasmo.  E ela determinada a fazer dos joelhos seus escravos.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Astromelias

Comprei um buquê de flores para colocar no vaso em cima da mesa da sala. Um buquê de astromelias roxas que alegraram o ambiente por um par de dias. No final de semana começaram a despetalar. Engraçado que elas não murcharam, não perderam a cor. Simplesmente se despetalam aos poucos quando eu não estou olhando. Cada vez que passo por elas, recolho um tanto de pétalas mortas caídas sobre a mesa e jogo no lixinho da pia. Elas ainda parecem com um buquê, mas eu sei que os dias estão contados. Que em pouco tempo todas as pétalas ter-se-ão ido, e o que sobrará será um punhado de caules embolorados em uma água turva. Fico pensando em qual foi o exato momento que o buquê deixou de ter vida. O instante em que esse processo todo se iniciou. Aquele limite sem volta em que o vivo e vistoso condenou-se irreversivelmente ao destino árido de um vaso morto. E cheguei a conclusão que eu mesma não notei quando minha primeira pétala caiu sobre o tampo de madeira. Nesse final de semana me despetalei. Sem dor nenhuma. Como quando uma rajada de vento joga ao chão as pétalas soltas de astromelia da alma. Elas já estavam soltas, só precisavam de algo que as desprendessem. Seja o vento, seja a gravidade. Pétalas soltas caem. Agarrar-se à ilusão de que ainda são flores não vai fazer delas um buquê. Perdi a confiança em todo mundo que conheço. Não é um exagero. Perdi a confiança na minha família, nos meus amigos. Naqueles que eu tinha certeza que eram amigos. Amei tanto a beleza de um vaso florido, que nem percebi que ele não é mais vaso, não é mais flor. Ainda amo, embora não saiba o que eu ame. Não sei se amo a idéia de astromelias, ou se sou capaz de amar o lixo orgânico que elas se tornam. Confiança é uma pétala. Quando ela se desprende, nunca mais será flor novamente. É possível amar sem confiar?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Segunda-feira

Como chegou ao café com pernas tão bambas, não sabia explicar. Olhou para os pés, mas não encontrou as formigas que sentia devorá-los. Talvez fosse só o bafo da manhã. Talvez a fome: havia saído de casa só com angústia no estômago. Pediu uma média e um pão na chapa. O pão ela jogou na lixeira da calçada. Na média conseguiu dar dois goles. A agonia quis sair em formato de vômito. Uma gota de suor gelado despencou da testa para o colo. Tentou, mas o bom dia para o balconista não saiu. Uma família dormia na calçada. E suas crianças, onde estavam? Olhou novamente para o atendente que lhe entregara o café, mas não o reconheceu. Por um instante viu seus filhos deitados na rua e seu amor sendo jogado no lixo não reciclável. A angústia começou a gritar sufocada dentro do estômago. Tentava subir até a garganta, mas um gole no café frio deixado em cima do balcão a fez descer. Viu as portas abertas de um ônibus e entrou. Ninguém sabe para onde foi.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Pano de chão, desinfetante, alcool e esponja

Mulher gosta de fazer as unhas no Brasil. Muito. Se nos outros países este assunto é tão sério quanto aqui no país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, não sei. Pode rir. Você deve ser homem.


Fiz um curso no qual o instrutor usou como exemplo uma mulher que, ao se preparar para uma reunião de negócios, lasca sua unha até o momento perfeita e passa a exibir aquela lasca descoberta, entre todas as outras unhas que ostentam o vermelho "Deixa Beijar".
A concentração vai TOOOOOODA para a maldita unha. Como disfarçar esta merda? 


E eu com isso, pergunta você meu jovem rapaz ou garboso maduro (as mulheres estão entendendo cada uma das palavaras...). Nada, eu sei. Você tem NADA a ver com isso. Mas receberá as conseqüências, eu garanto.


Se esta situação vier, após um dia no qual o objeto fálico mais próximo que a dita cuja tenha encontrado seja o rôdo, eu sugiro o silêncio. E muito alcool. Nela, claro.



quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Angel

Hoje estou ressentida. Sério. Não é um sentimento bonito, eu sei. Mas é um sentimento, e acho que a gente está na brincadeira para sentir todos os sentimentos. Então hoje é ressentimento. Mas nada que cause muito espanto. Não estou ressentida da minha infância, ou de alguém em particular. Estou ressentida sim por não ter nascido com o corpo da Gisele Bündchen, ou da Alessandra Ambrosio. Estou ressentida por sofrer bullying da balança do banheiro. De não poder comer Chocottone com chocolate extra. Verdade que não é um grande ressentimento, e futilidades costumam ter datas marcadas. Mas se uma mulher alega nunca ter se ressentido de uma Victoria’s Secret Angel, está mentindo. Ou pior. É porque seus ressentimentos são muito mais sérios. E daí vem a amargura, o desencanto. Por aqui tento manter assim. Os ressentimentos fúteis, e os amores verdadeiros e profundos.
PS.: E só para registro, já que meus amores são profundos, comunico em tom de piada interna que “se é para o bem de todos e felicidade geral da estufa, diga às avencas que fico”. ;-)

Veja?

Abro a página do Terra para acessar meu webmail e caio num erro há muito tempo não cometido: enquanto a página abre, baixo os olhos para ler algumas chamadas de notícias. Vejo um link para um vídeo com a seguinte legenda: "traficantes criam funk enquanto torturam garota. Veja."

Veja?

Veja??

Veja???

É isso que vocês jornalistas ou sei lá que raio de classe que trabalha no Terra querem que eu veja? Uma garota sendo torturada por traficantes enquanto eles criam um funk? É esse o convite que vocês me fazem? É sério isso ou será alguma piada como a da "Luiza que está no Canadá"? Um novo funk que vai invadir nossos ouvidos à la Michel Teló com seu "ai se eu te pego"? Como seria? "Vai cachorra, desce até o chão, agacha bem gostoso pra eu te dar um safanão." Ou..."eu vou te torturar, até você falar, eu vou te torturar, é capaz de você gostar."

O que eu estou escrevendo? Não sei mais, fiquei atordoada, com dor de estômago, de verdade: a comida que ainda estava no caminho encontrou um estômago embrulhado, está tudo aqui me impedindo de respirar livremente. O purê de batatas deve ter ido parar nos pulmões. Não sei. Não sei se era mesmo uma tortura filmada por um celular e jogada na rede por uma empresa ou um golpe de marketing (de extremo mau gosto). Numa semana em que se falou tanto sobre um suposto estupro no BBB425, eu já não sei mais em que e quem acreditar, até onde me espantar e por quem temer.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Segredo revelado

Eu tenho medo do que acontece em silêncio dentro do meu corpo (e em tantos outros corpos que amo). Criança ainda, enquanto eu procurava pela Rita Lee dentro das caixas de som na sala de casa, eu me perguntava se os médicos já haviam inventado uma máquina enorme onde eu pudesse entrar e ter todo o meu interior examinado para saber, afinal, que tudo estava funcionando conforme programado para uma vida saudável. Ou não. O que já me agoniava era o desconhecimento, a imprevisibilidade. E o pior de tudo para a minha pequena alma: a inevitabilidade. E essa aflição era um dos meus segredos. Nunca tive coragem de perguntar para os meus pais se essa máquina perscrutadora já existia. Talvez eu já tivesse a consciência de que essa preocupação não deveria estar na mente (ou no coração?) de uma menina. Então a Ita, parte babá, parte faxineira, parte cozinheira e inteira minha protetora chegava, me pegava no colo e colocava Martinho da Vila na vitrola. E a gente sambava enquanto gargalhava.

Hoje, por causa de uma dormência que se instalou no meu braço há meses, o medo saiu do silêncio.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Esporte mundial. Reclamar.

Deve ter sido no primeiro choro. Ali, naquele instante, saímos do aconchego uterino e abrimos o berreiro: quero voltaaaaaaaaaar!!!! Reclamação marco zero.
Quem gosta do BBB, reclama do que acontece na casa. Quem não gosta, reclama dos que gostam do BBB. Política, nem me fale! Devemos estar universalmente no fundo do poço, pois nada de bom acontece nesta esfera. Se existe vida além do planeta Terra, cheio de água poluída, eles devem estar com pena de nós. E reclamando do que pode vir a acontecer, caso este planeta... puff!
Faço parte dos que reclamam. Meu marido diz que sou PhD nesta arte. Meus filhos e enteados também. Minha mãe também. Bom, meu pai já morreu então... deixa prá lá.
No dia que tenho que fazer depilação, aumentam exponencialmente as minhas reclamações. Quem foi que inventou esta porcaria? Quem disse que mulher tem que estar totalmente sem pelos? Por que precisamos passar por esta tortura... e por aí vou eu até o Instituto de Depilação Irani.
Os pormenores da preparação, vou poupar a todos. Quem conhece sabe do que falo, quem desconhece pode perguntar para a amiga ao lado. Ou para o amigo ciclista ou gay. Eles sabem como é.
Entre uis e ais, a conversa com Alê, a depiladora, vai se desenrolando. Mulher fala mesmo, até quando depila e os assuntos são muito variados. Afinal, alguma coisa precisa nos entreter naqueles 40 - 60 minutos de tortura.
Sempre levo um livro para me distrair e isto acaba chamando a atenção e o assunto "voce le muito? o que está lendo agora?" se inicia. Alê estava envolvida com livros espíritas, depois de abandonar a religião evangélica. Fico curiosa e começo a perguntar, o que houve, como foi isso, qual o problema.
Em 2011, Graça a filha de 10 anos da Alê, foi diagnosticada com um câncer raro. A doença só foi descoberta, pois Alê cismou com uma bolinha na sola do pé direito da filha que 6 médicos insistiram que era olho de peixe. Ainda bem que o 7o. resolveu ouvir mais atentamente esta mãe e descobriu o que era.
Graça perdeu os lindos cabelos negros. Alê ganhou uma força que disse nunca ter conhecido antes.
Quando terminamos o papo e a depilação, emocionada Alê me disse: "E voce acredita que minha filha nunca reclamou?"
Fiquei envergonhada.

E no almoço de ontem

Um homem na faixa dos sessenta, negro com alguns fios de cabelo brancos, barriga pouco saliente e grossa aliança de ouro na mão esquerda, confessa para o amigo:

Lá consegui arranjar umas três namoradas, mas é muito difícil, não sei se você me entende. As mulheres só gostam de romance, não querem saber de aventura. Uma que arranjei era boa, sabe, mas já era uma senhora com quarenta e poucos anos, viúva e mãe de um filho com vinte. Desde que o marido morreu não tinha namorado, então queria uma coisa mais séria, é difícil. E depois era de uma família quatrocentona da Mooca, ficou muito complicado, você me entende?

Não sei se o amigo dele entendeu, mas eu não compreendi a parte que as mulheres não querem saber de aventuras, nem a da senhora com quarenta anos e menos ainda a família quatrocentona da Mooca, de onde vem parte da minha família.

E para a jovem mulher romântica da Mooca, fica o meu recado: a vida será bem melhor sem ele. Bem melhor.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

16 de janeiro de 2012.

Hoje estou um pouco triste. Passei o dia vendo tantas notícias tristes na internet. Trabalhei tanto que meu ombro dói. Tentei parar às 19h, mas só consegui às 21h. Só coisas feias acontecendo. Então já não tinha forças para escrever mais nada. A pia ficou cheia de louças, porque eu não tinha forças para lavar. O escritório ficou uma bagunça, porque eu não tive forças para colocar os papéis em seus devidos lugares. Nem todos os emails foram respondidos. Nenhum livro foi lido. Nenhuma frase escrita. Mais pessoas dirigindo bêbadas. Mais mulheres sendo tratadas como lixo. Mais crianças sucumbindo às drogas nas ruas. Mais cinismo em todas as relações. Eu geralmente vivo em um mundo cheio de amor. Acredito que as coisas vão melhorar sempre, que existe beleza no mundo e que a natureza humana é de bondade. Mas hoje... hoje estou triste. As coisas feias do mundo conseguiram tomar mais minha atenção do que o resto. E quando isso acontece não sobra muita energia para nada.

Bom dia, São Paulo

O primeiro calor do sol já encontra milhares de pessoas nas ruas. Indo para seus trabalhos nas ruas, empresas, escritórios, casas, lojas, postos de gasolina, farmácias, supermercados, restaurantes, padarias, bares, lanchonetes, copiadoras, bordéis, escolas, salas de aula, igrejas, shopping centers, hospitais. Outras voltando de seus trabalhos ou festas ou encontros. Celulares nas mãos com dedos frenéticos no teclado. Um bom dia para quem está distante. Uma espiada na vida do outro. Todos nos expomos. O metrô sem condutor já está no seu caminho roubando o espaço das formigas e cupins. O rapaz reclama da Paulista. A mocinha do Brás. Todos querem dinheiro, de preferência em troca de pouco trabalho. Um café para viagem com um pão de queijo, por favor. Zumbis com seus cobertores pelas calçadas. A maior frota de carros blindados. Todos sentimos medo. Quero tatuar a coragem na minha pele. Das mãos ou dos pés?

domingo, 15 de janeiro de 2012

Maria Dilma, quase uma lady

Depois de quase dois anos morando na Alemanha, volto para Vila Madalena, São Paulo, Brasil.
Confesso que não queria. Ficava assustada pensando na possibilidade da minha loirinha de apenas três anos ser seqüestrada à tarde em um shopping center lotado. Deixava uma cidade com aproximadamente cem mil habitantes, retornando à cidade dos milhões. Milhões!

Não é fácil se acostumar com idioma diferente, cheiros e sabores estranhos, neve na entrada de casa que você mesma limpa, sistemas super organizados ou não conseguir comprar o pãozinho para o café. É muito fácil se acostumar com a sensação de segurança, espaços bem cuidados, andar de bicicleta por todos os lados, abdicar do carro pois a cidade é plana e pequena, ter o marido de volta em horário regular e ainda aproveitar o tempo livre durante a semana com a família. É isso mesmo, DURANTE a semana.

Tudo isso estava ficando para trás e o que vinha pela frente, precisava de ajuda. Eu precisava dessa ajuda, pois voltar a trabalhar estava nos meus planos. Vamos contratar a empregada doméstica antes que o container desembarque a nossa mudança. Estávamos em mil novecentos e noventa e quatro.

Como ela apareceu, eu não me lembro. No Brasil, todo mundo tem alguém que pode indicar outro alguém para trabalhar. Um dia, tomando café no posto de gasolina perto de casa, a conversa entre o senhor de cabelos brancos e a atendente do Select já estava avançada nas tratativas de contratação. A loja estava prestes a perder uma funcionária. Minha mãe não é agencia de empregos e muitas vezes a consultam quando se trata de obter ajuda doméstica. Se voce frequenta sempre o mesmo supermercado, conhece desde o caixa até a pessoa que te ajuda com as compras, garanto que esta é uma boa fonte de contatos. A santa Luzia que trabalha para mim hoje em dia, veio direto de uma indicação no Pão de Açúcar. Esta mulher também é digna de uma crônica. Terá seu dia aqui no blogue.

Cento e quarenta e sete centímetros, vinte e sete anos e aproximadamente cinquenta quilos, com os quais vivia em briga constante. Cabelos crespos, alagoana, libriana, fumante e, de acordo com ela mesma, quase uma lady. Maria Dilma, muito prazer.

Sempre muito direta e clara, de criança e cachorro não cuidava, não dormia fora de casa e não gostava de se envolver na vida "dos patrões". Cozinhava "o normal" e queria os finais de semana livres. Perfeito, estava na medida para as minhas necessidades. Este foi o nosso começo, em um pequeno apartamento na rua Purpurina, com dois quartos, um casal, uma criança e nenhum cachorro.

Adorava um papo. Boa de prosa mesmo, atracada com a vassoura ou com uma pilha de roupa para lavar e passar, quem desse trela a ela tinha dificuldade de se despedir. Dilma passava de um assunto a outro facilmente, sem dar espaço para o interlocutor concordar, discordar ou ainda ter opinião. Ôxi... era a deixa para algum comentário. E que fosse feito rápido.

A "quase lady" tinha um sonho. Queria voltar a estudar e fazer faculdade de assistencia social. Saiu muito cedo de Alagoas para tentar, como tantos, a sorte na cidade grande. Também queria deixar para trás a triste vida, as brigas com o pai, a mãe que não se manifestava e o espaço que era pouco.

Treze anos se passaram desde o primeiro encontro. Dilma cuidou de criança, depois cuidou de duas crianças e um cachorro, dormiu fora de sua casa, participou de um divórcio e de um novo casamento, mudou de casa comigo três vezes até que o seu sonho pulsou fortemente, não permitindo mais que fosse adiado. Tchau Dilma, até a próxima.

Mantivemos contato por telefone, Natal, aniversários ou apenas para fofocar. Continua sendo difícil desligar o telefone quando nos falamos, ela ainda fala muito! Foi por telefone que fiquei sabendo que ela concluiu seus estudos graças ao supletivo, prestou duas vezes o vestibular para assistência social, entrou na faculdade e passou direto em seu primeiro ano como universitária.

Depois de quatro anos sem nos encontrarmos, hoje foi dia de uma cervejinha com a Baixinha. Ela voltou à nossa casa - misto de trabalho e lazer - com a família  reunida e colocamos todos os assuntos em dia e a saudade cedeu um pouco.

Se o valor de uma pessoa pudesse ser medido em números, a soma deste texto ainda ficaria devendo à Baixinha, que é muito mais que uma lady.

Toda a gente diferenciada

Já era 1h da manhã quando eu voltava para casa depois de um jantar e um longo papo com minha melhor amiga. Parei no farol da esquina da Angélica com a Sergipe. A mesma esquina da polêmica estação de metrô. A esquina do Pão de Açúcar e da "gente diferenciada". Na porta do supermercado estava sentado um bêbado segurando um copo de plástico. Ele estava encolhido, quase imperceptível, talvez na tentativa de chamar o mínimo de atenção e não ser enxotado da calçada. Pela porta saía um grupo animado de jovens. As meninas vestidas com saias curtinhas, brilhavam sob a luz pública, reluzindo glitter e gloss importado. Os rapazes, todos com os cabelos impecáveis. Exibiam músculos perfeitamente esculpidos dentro das mangas de suas camisetas brancas e coloridas. Ao fundo do grupo um rapaz loiro, com feições um pouco arrogantes, um pouco audaciosas. Feições que esses meninos "não-diferenciados" todos exibem antes de entrar em seus  carros e dirigirem para clubes e discotecas. O menino loiro carregava uma garrafa de vodka. O mendigo estendeu o copinho de plástico pedindo um pouco da bebida. Me surpreendi com a prontidão com que o rapaz parou para atender o bêbado. Arrancou o lacre da garrafa, jogou no chão da calçada, e com esforço tentou abrir a garrafa. A garrafa não abria. O mendigo estava com os olhos fixos no rapaz, quase não respirava, com seu copo de plástico aguardando uma dose de anestésico. O rapaz olhava para os amigos. Tentava abrir a garrafa ignorando completamente a pessoa para quem se disponibilizava ajudar. Ele tentou. Tentou. A garrafa não abria. Então o rapaz loiro desistiu. Virou as costas e seguiu o grupo de amigos. Sem dizer nada. Sem se desculpar. Sem dar uma satisfação. Ele foi embora sem nem se dar conta de que o copinho de plástico continuava no ar esticado, e que a expressão no rosto do bêbado era de um desolamento de cortar o coração. Meu farol abriu mas eu estava tão chocada com a falta de respeito que eu havia testemunhado, que não segui. Dei ré, encostei na calçada e tirei a primeira nota que encontrei na carteira para o bêbado. Ele se assustou a princípio, mas depois pegou o dinheiro e me agradeceu. Me agradeceu diversas vezes, e continuou agradecendo a Deus e me acenando sorrindo mesmo depois, quando eu já estava com o vidro insulfilmado levantado, esperando mais uma vez o farol abrir na esquina diferenciada. Uma parte de mim se sente responsável por todo sofrimento e pelo dano que a bebida que aquele homem comprar com o dinheiro que eu dei possa fazer. Uma outra parte simplesmente não consegue ver uma pessoa ser ignorada e tratada como lixo. Tanta polêmica por dizerem que as pessoas são diferenciadas. Eu só vejo pessoas.  Algumas agradecem a Deus, outras viravam as costas incapazes de olhar nos olhos daqueles a quem se dispuseram a ajudar. Naquela calçada só havia pessoas, e todas buscando serem anestesiadas.

O consertador de almas

Por que estou aqui?

...

Eu estou aqui não porque meu casamento rachou com a batida da porta, nem porque tenho medo – não, medo eu tenho de perder o emprego e de encontrar patinhas de barata na comida do restaurante; o que eu sinto é pavor, uma indizível estremeção de ter que enterrar um filho, e nem estou aqui porque me pergunto todos os dias, e se chover?

Eu estou aqui por causa da bolha que habita o meu estômago e de quando em quando se expande até a garganta e os dedos dos pés e das mãos, me amaldiçoando por eu ter apenas esse espaço para oferecer. Mas existem pernas e braços infinitos?

E quando sua inconformidade atinge a loucura, ela sobe para a minha cabeça e se autoinflama, como uma criança que desejasse ganhar o prêmio pela maior bolha de sabão já feita, soprando até o limite para não estourar, o espaço exato onde nenhuma gota de ar a mais caberia.

Eu fico como um balão perdido sobre os homens, aterrorizado com o azul que não está acima de nós, jogado pela ilusão a todos os cantos de uma cidade que não reconheço, gritando numa língua que ninguém decifra, até a bolha se autoesvaziar e me dar um pouco de tempo na concretude em que também não me encaixo.

Comecei com chá de hortelã e de folha de maracujá, passei para Maracugina e passiflora. Divã, quatro paredes e nenhuma palavra solta. Lexapro e Rivotril. Uma poltrona, dois olhos em mim e os meus na janela. Estou cansada estou cansada estou cansada – só tenho essas palavras que ninguém entende para dizer. Ansiolíticos debaixo da língua e dentro da veia. Alimentei a bolha com ar e cinzas.

Em nenhuma dessas caixas e cômodos encontrei o homem do conserto. E hoje, ele veio?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O jornaleiro

Eu passava em frente à banca todas as manhãs a caminho do trabalho. Nem sempre comprava, mas o “bom dia” para o jornaleiro era sagrado. Um dia ele me ofereceu uma revista emprestada, para ser devolvida depois de lida, e quis fazer disso um hábito, o que eu não permiti. Semanas mais tarde me presenteou com uma tábua e um cortador de pizza que ele mesmo havia feito. Também era marceneiro. Depois foi uma caixinha para guardar pequenos trecos. Levei meus cachorros para ele conhecer, o marido e meu primeiro filho, cujo crescimento na barriga ele acompanhou.

E numa manhã ele não estava. Nem na seguinte e na outra. O novo jornaleiro, sisudo, não soube me dizer seu paradeiro e nem um “bom dia”. Mudei de calçada.

Ano passado, em Parati por ocasião da Flip e quase dois anos após o sumiço do jornaleiro, resolvi comprar uns doces vendidos nas ruas por ocasião da festa de Santa Rita. O pagamento deveria ser feito ao senhor ali no caixa. Entrego o dinheiro ao homem de cabeça baixa que só a ergue para me dar o troco. Sim, ele. O jornaleiro havia virado caixa em homenagem a Santa Rita. Não, não era bem isso, ele me disse. A família era de Paraty e ele resolveu voltar para seu lugar de origem. Todos os moradores, ou quase todos, ajudavam na festa e ele estava fazendo a sua parte. Foi uma alegria o nosso encontro, mas não consegui vê-lo no dia seguinte, como combinado.

Hoje me lembrei dele. Não porque vi a tábua e o cortador de pizza na cozinha, mas porque parei numa banca de jornais para comprar a Bravo deste mês. O jornaleiro me vendeu o último exemplar. Ficou feliz por causa disso e me deu um Trident de presente. Que bom. A banca está no meu novo caminho.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Enquanto isso...

No metrô, em São Paulo, um jovem na faixa dos vinte anos e uma mulher com mais ou menos sessenta estão sentados lado a lado:

Ele: Então, sabe quando você passa quatro dias grudado numa pessoa e depois não aguenta mais olhar para a cara dela?
Ela: Ah, sei.
Ele: Foi isso que aconteceu. Não é que eu não goste mais dela, eu só não aguentava mais olhar para ela depois de quatro dias. Ai, eu precisava respirar, dar um tempo. Ela não entendeu, ficou chateada, mas eu vou ligar para ela. Não é nada demais. Você me entende?
Ela: Entendo, sim, mas é bom a gente ligar para as pessoas, dar atenção, mostrar que gosta delas. Você viu o que aconteceu com a minha irmã?
Ele: Ah, e ela, como está?
Ela: Hoje piorou, voltou a ser entubada. Ontem ela jantou sozinha, perguntou sobre um monte de gente, conversou, mas não aguentou muito tempo. E ela é tão forte, mais saudável que eu, veja só.
Ele: Mas faça pensamento positivo que vai dar tudo certo. Você acredita em Deus?
Ela: Como assim? Sabe por que eu respiro? Por causa de Deus.
Ele: Então ela vai ficar bem.

Uma voz anuncia a Estação Brigadeiro.

Ela: Eu desço aqui.
Ele: Foi um prazer te conhecer.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A asa quebrada

Ela resolveu escrever uma carta à mão em homenagem aos cinquenta anos dele. Já havia passado mais de vinte aniversários ao seu lado e não se lembrava de quando havia escrito a última carta com papel e tinta. Escolheu uma seda amarelinha comprada em Paris e guardada numa gaveta para uma ocasião especial. Não sabia se aquela era realmente uma ocasião especial, mas como nunca saberia com antecedência, colocou o papel sobre a mesa de jantar, inspirou fundo e ouviu o silêncio da casa.

Começou com “meu querido”, já agradecendo pelos anos de convívio, pelas velas que já apagaram juntos, pelo companheirismo e pelo filho que fizeram e criaram até o dia em que ele completou dezenove anos onze meses e vinte e dois dias de vida. Se precisasse, ela não saberia explicar como ainda vivia com alegria, mas o abraço dele, sempre quente, naqueles momentos em que seu único desejo era um descanso eterno, com certeza a ajudava.

Agradeceu pelo apoio no segundo momento mais triste da sua vida, quando perdeu seus seios para uma doença perversa que até hoje a faz duvidar da existência de Deus, e achou desnecessário recordar a mágoa que ainda guarda por ele não ter tido força para resistir a dois peitos perfeitos justamente quando ela ainda não conseguia ficar nua nem na frente do espelho. Ela chegou a compreender, mas compreensão não acaba com dor. Nem alivia.

Mas um dia ele voltou a tocá-la e ao invés de prazer ela sentiu gratidão, que passou a alternar com a raiva, que por sua vez foi aparecendo em espaços de tempo cada vez mais longos. Ela ainda aparecia, mas hoje já sabia despistá-la.

Decidiu lembrá-lo de que ele ainda era a sua escolha, reafirmada diariamente com o bule de café que ela deixava preparado logo às seis da manhã, enquanto ele saía da cama para tomar banho.

Terminou desejando-lhe um feliz aniversário e antes de assinar a carta sentiu que deveria escrever um “eu te amo”, mas não conseguiu. Ela havia falado em dor, alegria e esperança, como poderia reduzir tudo o que havia escrito e vivido com ele num “eu te amo”? Então não era óbvio que ela o amava, se o amor é cuidado, compreensão, empatia e entrega? Fala-se tanto sobre o amor que chegou a duvidar que conhecesse seu significado. Se amor era o que a mantinha nesse casamento, o que ela sentia pelo filho, por uma árvore plantada no quintal da sua casa e pelo cachorro que dormia aos seus pés, como era possível que fosse simbolizado numa só palavra? Ou, na verdade, ela simplesmente não conseguia escrever “eu te amo” porque o amor pelo marido havia se transformado em hábito? E se era isso, não é possível amar um hábito? E alguns hábitos não viram hábitos porque repetimos aquilo que amamos?

Soltou a caneta e levantou os olhos para o tempo. Lembrou-se da xícara herdada de sua avó, envolta num pedaço de feltro no fundo do guarda-roupa, porcelana Rosenthal branca com detalhes de flores azuis e filetes de ouro, único bem material que sua avó conseguiu esconder dos nazistas e que chegou do outro lado do Atlântico com a asa quebrada. Sua avó gostava ainda mais do objeto que fora de sua mãe perdida na guerra por causa dessa imperfeição. “Isso é a vida, minha neta. Ninguém passa por ela sem uma mutilação, nem mesmo as xícaras”. No dia em que a avó morreu, antes que qualquer parente percebesse, a xícara já estava escondida no seu guarda-roupa. Nos momentos de angústia ou aflição, era para aquele objeto de adoração de três gerações que ela olhava. Quando a vida do seu filho foi interrompida, foi olhando para a xícara de asa quebrada que ela rezou com os dois joelhos no chão.

Colocou um pouco de água para esquentar e desembrulhou a xícara mais uma vez. Sempre que fazia isso passava a ponta dos dedos pelas flores e pela borda dourada. Olhou para ela com os olhos doídos e o coração vazio. Esquentou-se com um chá de camomila e voltou para a carta interrompida, onde escreveu, antes da sua assinatura, “eu te amo”.