terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A asa quebrada

Ela resolveu escrever uma carta à mão em homenagem aos cinquenta anos dele. Já havia passado mais de vinte aniversários ao seu lado e não se lembrava de quando havia escrito a última carta com papel e tinta. Escolheu uma seda amarelinha comprada em Paris e guardada numa gaveta para uma ocasião especial. Não sabia se aquela era realmente uma ocasião especial, mas como nunca saberia com antecedência, colocou o papel sobre a mesa de jantar, inspirou fundo e ouviu o silêncio da casa.

Começou com “meu querido”, já agradecendo pelos anos de convívio, pelas velas que já apagaram juntos, pelo companheirismo e pelo filho que fizeram e criaram até o dia em que ele completou dezenove anos onze meses e vinte e dois dias de vida. Se precisasse, ela não saberia explicar como ainda vivia com alegria, mas o abraço dele, sempre quente, naqueles momentos em que seu único desejo era um descanso eterno, com certeza a ajudava.

Agradeceu pelo apoio no segundo momento mais triste da sua vida, quando perdeu seus seios para uma doença perversa que até hoje a faz duvidar da existência de Deus, e achou desnecessário recordar a mágoa que ainda guarda por ele não ter tido força para resistir a dois peitos perfeitos justamente quando ela ainda não conseguia ficar nua nem na frente do espelho. Ela chegou a compreender, mas compreensão não acaba com dor. Nem alivia.

Mas um dia ele voltou a tocá-la e ao invés de prazer ela sentiu gratidão, que passou a alternar com a raiva, que por sua vez foi aparecendo em espaços de tempo cada vez mais longos. Ela ainda aparecia, mas hoje já sabia despistá-la.

Decidiu lembrá-lo de que ele ainda era a sua escolha, reafirmada diariamente com o bule de café que ela deixava preparado logo às seis da manhã, enquanto ele saía da cama para tomar banho.

Terminou desejando-lhe um feliz aniversário e antes de assinar a carta sentiu que deveria escrever um “eu te amo”, mas não conseguiu. Ela havia falado em dor, alegria e esperança, como poderia reduzir tudo o que havia escrito e vivido com ele num “eu te amo”? Então não era óbvio que ela o amava, se o amor é cuidado, compreensão, empatia e entrega? Fala-se tanto sobre o amor que chegou a duvidar que conhecesse seu significado. Se amor era o que a mantinha nesse casamento, o que ela sentia pelo filho, por uma árvore plantada no quintal da sua casa e pelo cachorro que dormia aos seus pés, como era possível que fosse simbolizado numa só palavra? Ou, na verdade, ela simplesmente não conseguia escrever “eu te amo” porque o amor pelo marido havia se transformado em hábito? E se era isso, não é possível amar um hábito? E alguns hábitos não viram hábitos porque repetimos aquilo que amamos?

Soltou a caneta e levantou os olhos para o tempo. Lembrou-se da xícara herdada de sua avó, envolta num pedaço de feltro no fundo do guarda-roupa, porcelana Rosenthal branca com detalhes de flores azuis e filetes de ouro, único bem material que sua avó conseguiu esconder dos nazistas e que chegou do outro lado do Atlântico com a asa quebrada. Sua avó gostava ainda mais do objeto que fora de sua mãe perdida na guerra por causa dessa imperfeição. “Isso é a vida, minha neta. Ninguém passa por ela sem uma mutilação, nem mesmo as xícaras”. No dia em que a avó morreu, antes que qualquer parente percebesse, a xícara já estava escondida no seu guarda-roupa. Nos momentos de angústia ou aflição, era para aquele objeto de adoração de três gerações que ela olhava. Quando a vida do seu filho foi interrompida, foi olhando para a xícara de asa quebrada que ela rezou com os dois joelhos no chão.

Colocou um pouco de água para esquentar e desembrulhou a xícara mais uma vez. Sempre que fazia isso passava a ponta dos dedos pelas flores e pela borda dourada. Olhou para ela com os olhos doídos e o coração vazio. Esquentou-se com um chá de camomila e voltou para a carta interrompida, onde escreveu, antes da sua assinatura, “eu te amo”.

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