quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Margarida

Ela não gostava do seu nome. Achava que não combinava com sua pele ainda sem uma ruga. Suas xarás já eram tias-avós, na escola seu nome era pronunciado pelos colegas acompanhado de um risinho ou com uma voz de pato esganiçada. Pensou em se dar um apelido, mas não gostava de Marga ou Guida. Queria mesmo era se chamar Beatriz para poder ser Bia. Soava tão bem aos seus ouvidos: Biii...aaa.

Sua mãe escolhera o nome em homenagem à flor, seu pai não se opôs, apesar de preferir as orquídeas. “Margaridas são tão comuns”. Ela mesma não sabia qual era sua flor predileta, talvez nem gostasse de flores. Preferia os gatos que se enroscavam nas suas pernas e pediam por água e comida. Para piorar, era feia, e toda mulher com nome de flor tem a obrigação de ser bonita. Seu cabelo ficou indeciso entre o liso materno e o crespo paterno. Não era loira como a mãe nem morena como o pai. Os olhos castanhos ficavam levemente verdes sob a luz do sol, mas faltava um brilho, já tinha até perguntado para a mãe se não teria catarata. A mãe mandou a menina passear. E para piorar ainda mais, as espinhas tinham deixado marcas não só no seu rosto, mas também em todo o seu colo. Que espécie de margarida era ela? Um bem-me-quer que parecia terminar em mal-me-quer. Enquanto as amigas choravam pelos primeiros namorados, Margarida lia os romances da Danielle Steel, escritora preferida da sua mãe, e acompanhava a novela das nove com aflição até o capítulo final. Por que as mocinhas sofriam tanto para se casar com o galã? Dos romances se interessou por poesia, aprendeu a recitar algumas, em voz quase inaudível, e conquistou o sorriso de um colega que gostava do mesmo poema que ela.

No final da adolescência, algumas flores secas de Margarida caíram, o caule cresceu um pouco mais e tomou uma forma robusta, de planta madura que floresce quando a natureza determina e não quando quer. Do colega ganhou o primeiro beijo e o primeiro toque nos seios, por cima da blusa, como se fosse um descuido. Margarida fingiu que não percebeu. Ela sabia que beijos melhores ainda viriam, mas aquele havia virado uma tatuagem. Nessa noite não dormiu. Passou a madrugada inteira alisando Pablo, o gato de pelos alaranjados, e sussurrando nos ouvidos do bichano “eu beijei eu beijei eu beijei eu beijei”. Escreveu sua primeira poesia, com rimas pobres e nenhuma métrica, mas assim como os beijos melhores que viriam, outras ainda seriam desenhadas.

E os beijos vieram, com o mesmo colega que sorria ao ouvir poesia e que também a levava ao cinema, brincava com cachorros e gatos, passeava com ela de mãos dadas, pagava as contas nas lanchonetes e a pediu em casamento. Margarida passara tanto tempo pensando na sua feiura que nunca se imaginara vestida de noiva. Escolheu um modelo rendado quase infantil e cedeu à vontade da mãe, adornando os cabelos soltos e escovados com uma tiara de margaridas naturais. Nos pés, uma sapatilha branca que lembrava a das bailarinas que ela admirava e nunca conseguira imitar. Quando chegou ao altar, com as mãos geladas agarradas às do pai, o marido, com os olhos marejados, sussurrou ao seu ouvido um “você está linda” e Margarida sorriu, acreditando. Se ela estivesse na frente de um espelho, veria seus olhos brilharem.

Margarida não sabia como ser uma esposa. Continuou no seu trabalho de secretária durante o dia e quando chegava em casa à noite, depois de um metrô e um ônibus, preparava o jantar que eles comeriam juntos, lavava e passava as roupas enquanto via a novela e estava sempre disposta quando ele a procurava. Ela gostava. Antes de dormir, pingava atrás das orelhas duas gotinhas de um perfume delicado extraído de flores naturais. O marido a chamava de “minha Margarida” e ela não sabia, mas era feliz nesse jardim.

Nos finais de semana eles se dividiam na faxina, visitavam os familiares, caminhavam no parque, iam ao cinema e liam poesias juntos. Ela aprendeu a beber um pouco de vinho, uma taça quando os amigos do marido iam a sua casa comer uma pizza. Margarida ria com eles e até passou a trocar confidências com as esposas. Quando elas reclamavam das dificuldades do casamento, Margarida sorria e olhava para o marido no outro lado da sala, com vontade de abraçá-lo. Talvez ela ainda não tivesse aprendido a ser uma esposa verdadeira.

Numa noite em que se preparavam para dormir, ela afofando os travesseiros e esticando o lençol com as mãos, ele disse que queria um filho. Margarida correu para o banheiro segurar o choro. Não se sentia preparada para ser mãe nem para contar a ele. Quando confirmou que estava grávida, um mês depois, engoliu as lágrimas amedrontadas para não estragar a alegria do marido. Ela teria nove meses para se acostumar com a ideia de um bebê crescendo dentro dela e isso aconteceu logo que ela ganhou da sogra os primeiros sapatinhos. Margarida passou dias com eles na bolsa e sempre que se via sozinha, no escritório, no refeitório, no ônibus ou em casa, ela vestia aqueles sapatinhos nos dedos indicador e médio e os balançava. Margarida perdeu a vergonha de cantar, comprou livros de histórias infantis e pediu para a mãe lhe ensinar tricô. Juntas fizeram mantas, casaquinhos, meias e mais sapatos. O chefe deu o berço que ela queria, todo branco, e as colegas do escritório deram mamadeiras, chupetas e muitos pacotes de fralda. Foi Magda, a outra secretária e mãe de duas crianças, quem disse que ela precisaria de muitas. Margarida achou um exagero, mas opiniões como essa ficavam guardadas na sua cabeça. Em retribuição, Margarida sorria e levava um bolo de cenoura com cobertura de chocolate feito por ela para o café da tarde. O chefe era quem mais comia.

Margarida acompanhou o crescimento da barriga todos os dias, de manhã e à noite. Pensava nas fases da lua e achava seu ventre ainda mais bonito. Passou a rir quando deixou de enxergar seus pés. Achou estranho quando sentiu o bebê se mexer pela primeira vez, lembrou de um filme com uma mulher grávida de um alienígena, mas esse foi outro pensamento que ficou guardado na sua cabeça. Depois acostumou.

Antes de dormir, Margarida e o marido acariciavam a barriga de lua e imaginavam como seria o bebê. O maior medo de Margarida era que ele tivesse seus olhos. O marido a beijava e a chamava de boba. Haviam decidido juntos não saber o sexo da criança com antecedência. “Pra quê?”, era o que Margarida respondia diante da ansiedade dos parentes e amigos. Ela passou a entender porquê as gestantes dizem que o importante é que a criança nasça com saúde. Queria seu bebê respirando e depois sorrindo. Os detalhes, ah, esses viriam com o tempo e o maior desejo de Margarida era poder observar essas descobertas.

Os dois montaram o berço e a cômoda. Margarida costurou a cortina e o marido deixou a parede amarela, tão clarinha quanto um raio de sol no inverno. Depois do jantar, os dois passavam uns tantos minutos olhando para as paredes e para o berço, cada um guardando seus próprios segredos.

Com quarenta semanas de gestação, o médico sugeriu uma cesárea. Margarida não entendia essa interferência. “Vai sair, ele vai sair”. Foi depois de um almoço na casa da mãe que Margarida sentiu uma cólica forte. Que aumentou. E aumentou mais. Uma dor assim, só podia ser a vida querendo romper. O marido não conseguia colocar a chave no contato, foi o pai quem a levou para a maternidade, o marido segurando sua mão. Margarida respirava.

Um grito saído de um fundo que Margarida não sabia existir e a vida rebentou, pequena e luminosa, forte e decidida. Um clarão, um estrondo. Deus. Então era isso. É para isso que vivemos? É esse o grande mistério da vida? Deus falava com ela por meio do choro de uma criança. A vida fazia sentido. “É uma menina”. Onde estavam os olhos de catarata?

Nos seus braços, Margarida encontrou o que nem sabia que procurava. Deus pode ter nos inventado, mas não viu nenhuma pessoinha sair de suas entranhas. O mundo ficou pequeno. Aquele momento era o epítome da vida humana.

A menina mantinha os olhinhos fechados e não chorava. Era a mais bela criatura que Margarida já havia visto em toda a natureza, mais bonita até do que os olhos das onças que admirava desde criança. Mais arrebatadora do que qualquer poesia já escrita. Mais nobre do que a arte. Mais encantadora do que as manhãs de outono no parque. Mais entorpecente do que uma taça de vinho. Mais cheirosa do que perfumes florais. Mais brilhante do que uma estrela que apelidou de “minha”. Nomeou-a Jasmim. Uma beleza assim só pode receber um nome de flor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário